UNIDADE DIGITAL

Educação em Foco l "Tia, eu não sei escrever!"

Educação em foco

04 Maio, 2017

Tia, eu não sei escrever!

Marissol Prezotto[1]

 

- Lipe, vamos escrever um bilhete para a mamãe de aniversário? - perguntei ao meu sobrinho de 6 anos.

- Tia Mari, eu não sei escrever!

Fiquei a pensar: como não sabia escrever? Escuto relatos da minha irmã e dele das lições de casa que tem.

- Teve lição de casa hoje? - provoquei com olhos arregalados.

- Sim, tia. Tive que escrever.

- Mas você me disse que não sabe escrever. Como assim? Pega lá.

Trouxe a lição de casa cheia de escrita, com cruzadinhas, uma imagem que foi pintada e o nome do animal escrito. Pedi para ler. Leu.

- Viu como sabe ler?

- Eu sei juntar as letras e o som, tia!

- Isso é ler, Lipe! - vibrei e perguntei para checar a informação - É assim mesmo. Soletra para mim a palavra comida.

Diz em voz alta c com o, co, mi, da. Comida!

Vibrei por dentro. Como não sabe escrever? Quantas crianças ou adultos dizem não saber a linguagem da forma certa como fez Lipe ao ser questionado sobre uma das formas da linguagem, a escrita?

Não podemos nos esquecer de que a linguagem sempre esteve presente em nossa vida. Primeiro iniciamos com gestos que nos fazem comunicar da maneira mais primitiva que existe, porém cheia de sentidos e significados para quem utiliza.

Nesse momento, elaboram-se elementos linguísticos importantes que em geral se encontram na base de qualquer linguagem fônica. São sons que nos inserem no coletivo ao qual pertencemos. Dessa forma, a linguagem vai ganhando um sentido próprio e se desenvolvendo.

Concordo com Volochinov (2013, p. 141) quando diz que  "A linguagem é um produto da atividade humana coletiva que reflete em todos os seus elementos tanto a organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou."

Retomo as palavras de Lipe quando me diz ?Tia Mari, eu não sei escrever!?. Sabe escrever sim e, essa escrita é a tradução da vivência que vem tendo ao longo dos seus 6 anos de idade, tanto na escola como nos diferentes grupos ao qual pertence. A escrita é a linguagem materializada da cultura e da humanidade.

Quando dialogamos foi a linguagem que possibilitou a mim e a Lipe um intercâmbio social. Ele se mostrou um pouco receoso ao dizer como se escreve. Mas ao tirar a atenção da escrita, foi me dando pistas de como está seu processo de alfabetização. Além disso, foi me revelando como organiza seu pensamento e seu processo de aprendizagem referente à aquisição e sistematização da língua.

Ao organizar o pensamento e expressá-lo é possível evidenciar outra função importante da linguagem, a do pensamento generalizante. Nessa função, a linguagem se torna um instrumento do pensamento uma vez que a linguagem fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento. Todo esse movimento é que potencializa o funcionamento psicológico do ser humano.

Como professores, temos que conhecer as diferentes linguagens e suas funções para que possamos possibilitar aos nossos alunos a confiança e a certeza perante as solicitações que cada grupo social nos convida a apresentar o que sabemos ou como nos comunicamos.

 

Referências:

- VOLOCHINOV, Valentin N..A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013.

- OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico. São Paulo: Editora Scipione, 1995.

 



[1] Professora das séries iniciais do Ensino Fundamental da Escola Comunitária de Campinas. Membro do Núcleo de Desenvolvimento do Educador - Unità Educacional. Coordenadora do Curso de Pós Graduação Alfabetização e Letramento - IBFE. Pesquisadora integrante do GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada da Faculdade de Educação da UNICAMP. Mestre e Doutora em Educação, área: Formação de Professores e Ensino e Práticas Culturais pelo programa de Pós-Graduação em Educação - Faculdade de Educação - UNICAMP. Pedagoga pela UNICAMP. Supervisora de Língua Portuguesa do PNAIC-PACTO UNICAMP 2013/2014. http://lattes.cnpq.br/5764087747512788