Pensar, conhecer e realizar - Num mundo de enormidades
12 Julho, 2017
NUM MUNDO DE ENORMIDADES
Jorge Luiz da Cunha
Para começo de conversa, creio que é necessário refletir sobre as bases do que consideramos e reconhecemos como Educação hoje. Sua utilidade, seus contextos e seu futuro. Sendo assim, é plenamente justificado se ocupar em pensar sobre o cuidado, no nosso caso, em relação à tradição cultural que funda nossos afazeres e sua motivação, a realização humana.
Considerando a história recente do mundo, é possível afirmar que vivemos um tempo de enormidades. Questões enormes, impossíveis de ser compreendidas em sua complexidade e dimensão nos ameaçam e acabam por nos alienar da condição humana. Sempre que nos defrontamos com fenômenos e realidades, diante das quais nos apresentamos como sujeitos incapazes de lhes atribuir sentidos e significados, perdemos a capacidade de refletir sobre o sentido e o significado de nossas próprias existências e de nos atribuir valor e dignidade. Como consequência nos tornamos incapazes de atribuir valor e dignidade aos outros com os quais convivemos.
Um poema grego composto por Hesíodo entre os séculos 7 e 8 a.C., chamado Teogonia apresenta-se como interessante e apropriada metáfora para refletirmos sobre a presença de enormidades no mundo.
Livremente interpretado, o poema informa que no começo dos tempos a humanidade não existia, pois o mundo era habitado pelos titãs. Titã é uma palavra grega que em tradução literal significa enormidade - tudo aquilo que é tão grande que não pode ser abarcado pela habilidade humana de medir com a ajuda dos sentidos.
Cronos (o tempo mensurável), o mais jovem dos titãs, gerado por Urnao (a imensidão do céu) e Gaia (a imensidão da terra), torna-se o detentor máximo do poder entre os seres divinos, líder de todos os titãs. Amaldiçoado pelo pai com a profecia de que teria um filho que o destruiria, devora todos os filhos gerados por sua união com Réia. Diante do nascimento do seu sexto filho, Réia com a ajuda de Gaia trata de salvá-lo. Zeus, como é chamado, é levado para a ilha de Creta para ser protegido da fúria de seu pai. Réia envolve uma grande pedra com os panos do recém-nascido e entrega o embrulho a Cronos que, sem suspeitar, o devora.
Zeus, protegido pelas ninfas, cresce seguro em Creta. Molhando seus pés descalços de criança nas ervas e flores que cobrem os campos, ainda úmidos pelo orvalho do amanhecer. Enquanto cresce, corre pelas pradarias, vales e montanhas da ilha, habituando-se a ver o sol que nasce e ilumina a terra em cada manhã e que se põe em cada entardecer. Alimentado com leite e mel, a noite é posto para dormir num leito forrado de ervas finas.
Adulto, lhe revelam que é filho de Cronos e que seu pai havia devorado seus irmãos. Sob a orientação de Metis (a prudência), Zeus estabelece as estratégias para resgatar seus irmãos do interior de Cronos. Ao lado de seus irmãos e irmãs e dos ciclopes dá início a uma guerra contra os titãs, que dura uma eternidade inteira. Vencedor, aprisiona as enormidades no Tártaro - uma região mítica habitada por monstros e na qual nenhum ser humano pode penetrar sem "deixar de ser o que é". Assim, Zeus passa a reinar absoluto e ordena o mundo segundo sua vontade. Depois disso, na terra, surge a humanidade.
Há alguns aspectos neste mito grego que remetem a valores, relacionados à compreensão do humano, presentes já na cultura grega - alicerce da civilização a que pertencemos -, e que não devem ser desprezados quando tratamos de educação e do cuidado:
- Diante de um mundo habitado por enormidades, o humano não é possível, pela ausência de condições para produzir conhecimento. Desde os gregos o conhecimento é entendido como resultado do uso humano da inteligência, intimamente associado com a aplicação dos sentidos sobre a realidade. Ou seja, conhecimento humano é processo reflexivo que se fundamenta na experiência sensível.
- As titânicas enormidades somente podem ser derrotadas e afastadas do mundo, para dar condição à preservação e ao desenvolvimento da humanidade, através do uso de estratégias e virtudes humanas. No mito grego, Zeus as aprendeu vivendo como uma criança humana que cresce exercitando seus sentidos, e especialmente a imaginação. Para Jean-Yves Leloup (2006), a imaginação "se situa na base do que é humano: sociedades, instituições, normas políticas e morais, filosofia, obras estéticas e o que dizem hoje as ciências; tudo isso resulta dela."
Um contexto de crescente desumanização é o adequado a naturalização de uma ética individualista e utilitária, em que a ação do sujeito fica reduzida a produção e consumo de bens materiais tangíveis, e suas relações sociais passam a ser mediadas unicamente por vantagens imediatas, sonantes e calculáveis. Incapazes de nos interessar pelos outros, bens relacionais como cuidado, generosidade e a gratuidade que lhes é inerente, passam a ser atributos de ingênuos homens comuns. Os marginalizados do processo de concorrência econômica, sob a ótica dos "bem suscedidos", fracassam na tentativa de obter sucesso e reconhecimento social e buscam na autoajuda e na religião alento e justificativa para as suas medíocres existências. Na cultura capitalista de consumo somos todos submetidos pela epifania da razão dos vencedores, e suas perspectivas existenciais egoístas.
Diante disto, cabem as questões: - Qual o sentido da educação escolar neste contexto? - Do que ela deve apropriar-se para ser efetiva na formação de sujeitos capazes de oferecer resistência e de agir para garantir humanidade e futuro?